“Por que você não me ama?“
A pergunta lançada por KeiyaA logo nos primeiros minutos de I Thot There Was One Wound in This House, There’s Two, música de abertura em Forever, Ya Girl (2020, Forever Recordings), diz muito sobre a trilha sentimental percorrida pela cantora, compositora e multi-instrumentista norte-americana durante a execução do primeiro álbum de estúdio da carreira. São faixas regidas pela incerteza da vida adulta, relacionamentos instáveis e a constante sensação de deslocamento, conceito que se reflete tão logo o disco tem início, mas que orienta toda a experiência do ouvinte até a entrega da atmosférica Keep It Real, faixa de encerramento do registro.
Parte desse direcionamento estético e lírico vem da forma como o próprio álbum foi concebido. Original da cidade de Chicago, porém, residente em Nova Iorque, KeiyaA decidiu trabalhar na produção do disco de forma totalmente solitária. Da composição dos arranjos à formação dos versos, tudo gira em torno das experiências pessoais da artista. São frações instrumentais e poéticas que se revelam ao público em uma medida própria de tempo, reforçando a entrega sentimental da musicista. De fato, não é difícil fechar os olhos e visualizar a imagem da cantora em um canto escuro do próprio apartamento, munida apenas de um sintetizador, uma bateria eletrônica e iluminada pela tela do computador.
O resultado desse propositado isolamento criativo está na entrega de um registro econômico, porém, maior a cada nova audição. São camadas de sintetizadores, vozes sampleadas e instrumentos que surgem e desaparecem durante toda a execução da obra, como um labirinto sentimental e rítmico a ser desvendado pelo ouvinte. Exemplo disso está na atmosférica Hvnli, música que se espalha em meio a ambientações cíclicas, ruídos ocasionais e a linha de baixo sempre destacada, como um complemento à voz submersa da cantora. Canções dissolvidas em pequenas doses, como uma extensão natural de tudo aquilo que KeiyaA havia testado no registro anterior, o também minimalista Work EP (2015).
Com base nessa estrutura, KeiyaA entrega ao público uma obra que dialoga de forma muito mais expressiva com o experimentalismo eletrônico de estrangeiras como Tirzah e Inga Copeland do que com o R&B de outros nomes recentes da cena norte-americana. Dos poucos momentos em que bebe da música negra dos Estados Unidos, como em Way Eye e Do Yourself a Favor, a cantora vai do neo-soul ao jazz em uma linguagem deliciosamente contida, proposta que aponta para o recente When I Get Home (2019), de Solange, ou mesmo o atmosférico Legacy! Legacy! (2019), da conterrânea Jamila Woods.
Entretanto, mesmo nesses instantes mais acessíveis do álbum, KeiyaA em nenhum momento tende ao óbvio. Como indicado logo nos primeiros minutos do disco, na já citada I Thot There Was One Wound in This House, There’s Two, cada fragmento do trabalho parece pensado de forma a jogar com a interpretação do ouvinte. Do uso de texturas eletrônicas e vozes instrumentais, em A Mile, A Way, passando pela citação à obra de Boris Gardiner, em Every N**** Is a Star, perceba como a cantora transita por entre gêneros e referências de forma sempre particular, estrutura que faz lembrar da versatilidade de Erykah Badu em registros como o provocativo Mama’s Gun (2000).
Curioso, como tudo aquilo que define a obra de KeiyaA desde a estreia com Work EP, Forever, Ya Girl parece pensado para ampliar criativamente os domínios da artista estadunidense. Longe de qualquer traço de linearidade, cada composição do disco se apresenta de forma a revelar um inusitado conjunto de ideias e experiências instrumentais que se entrelaçam de maneira incerta. Composições que vão do R&B eletrônico ao neo-soul de forma sempre fragmentada, conceito que estabelece nas confissões românticas, medos e desilusões da artista um importante componente de aproximação entre as faixas.
O post Crítica | KeiyaA: “Forever, Ya Girl” apareceu primeiro em Música Instantânea.