Deus sempre foi encarado como um importante componente lírico para o trabalho de Kanye West. Seja na devoção indicada em Jesus Walks, uma das principais músicas do primeiro álbum de estúdio do rapper norte-americano, The College Dropout (2004), ou na força colossal que toma conta das vozes em Ultralight Beam, faixa de abertura em The Life of Pablo (2016), não são poucos os momentos em que o artista utiliza da própria crença como um estímulo natural para a composição dos versos. Instantes em que West vai da celebração religiosa à personificação divina, como em Yeezus (2013), trabalho em que afirma ter conversado com Jesus e reforça: “Eu sou um deus“.
Em Jesus Is King (2019, GOOD Music / Def Jam), nono e mais recente álbum de estúdio do rapper estadunidense, é onde essa forte comoção religiosa se manifesta com maior naturalidade. Sequência ao intenso processo criativo que resultou na produção de cinco registros de inéditas durante as sessões em Wyoming — Daytona, Ye, Kids See Ghosts, Nasir e K.T.S.E. —, o trabalho de essência cristã utiliza das apresentações do Sunday Service, um misto de coral gospel e performance ao vivo, como ponto de partida para cada uma das 11 composições que recheiam o disco. São faixas curtas, por vezes inacabadas, estrutura que naturalmente força o imediato regresso por parte do ouvinte, porém, indica uma série de problemas quanto ao acabamento tosco dado à obra.
Longe do refinamento que marca alguns de seus principais trabalhos, como Late Registration (2005) e My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), Jesus Is King se revela muito mais como uma obra de ideias do que um registro completo. São composições montadas a partir de retalhos instrumentais, fragmentos de vozes e sintetizadores contidos, como se West e seus parceiros de estúdio investissem na simplificação dos elementos. Trata-se de um álbum claramente feito às pressas, finalizado horas antes de sua publicação pelo próprio artista. E isso se reflete não apenas na base melódica do disco, conceito também adotado no antecessor Ye, mas, principalmente, na forma o rapper tenta dar significado a um trabalho liricamente vazio.
Por se tratar de uma obra monotemática, centrada unicamente na relação de West com Deus, Jesus Is King é um trabalho que pouco avança criativamente, dando voltas em torno de um limitado conjunto de experiências. “Jesus, ajude-nos a viver / Jesus, nos dê riqueza / Jesus é o nosso cofre / Jesus é a nossa rocha / Jesus, nos dê graça / Jesus, mantenha-nos seguros“, segue na repetitiva Water, canção que parece montada a partir da pregação barata de um líder religioso. São personagens e fragmentos bíblicos que surgem e desaparecem de forma sempre aleatória, como se o rapper simplesmente folheasse as páginas da bíblia em busca de possíveis referências.
Claro que isso não interfere na produção de faixas conceitualmente bem resolvidas. É o caso de Fellow God. Concebida em meio a samples de Can You Lose By Following God, hino gospel lançado em 1974, a canção utiliza de referências ao sofrimento de Cristo como um elemento de conexão com as experiências particulares e conflitos mentais vividos pelo próprio rapper. O mesmo cuidado acaba se refletindo mais à frente, em Use This Gospel. Marcada pela breve interferência do saxofonista Kenny G e a inusitado encontro de West com a dupla Clipse, antigo projeto de Pusha T e No Malice, a faixa ganha destaque pela profunda entrega sentimental que orienta a composição dos versos, como uma fuga do direcionamento simplista que orienta o restante do álbum.
Mesmo marcado pela forte interferência de Ant Clemons, uma das principais vozes envolvidas com o Sunday Service, Jesus Is King é um trabalho que pouco se destaca em relação ao material entregue pelo rapper na última década. Trata-se de uma previsível reciclagem de conceitos e referências que tem sido incorporadas desde o lançamento de The Life of Pablo, obra também guiada pelo forte aspecto religioso e musicalidade fluida, como se transitasse por entre gêneros. Canções que utilizam da temática gospel como maquiagem conceitual para uma nova egotrip de Kanye West, dessa vez, desprovido do mesmo comprometimento estético detalhado em alguns dos registros que fizeram dele um dos nomes mais importantes do rap norte-americano.